Para reescrever a própria vida
Ela não podia passar maquiagem ou sair para dançar com o marido. Tomar banho antes dele chegar do trabalho também não era permitido, se não ele achava que ela havia recebido um amante em casa. Mesmo seguindo todas essas regras, a babá Simone Silva*, 35, vivia sendo agredida pelo companheiro. Uma vez chegou a parar no hospital. Em outra cena de ciúme, o agressor tentou feri-la com um machado. “Ele só não me matou porque Deus virou aquele machado na hora”, relata. Foram exatos 20 anos de violências física e psicológica, que começaram ainda nos tempos de namoro.
Até que em julho do ano passado, a babá conseguiu se livrar das “algemas” do marido e denunciar. Assim como ela, 16.718 mulheres foram à Polícia Civil em 2013 para registrar situações de violência doméstica na capital. São 45 casos por dia, uma média de duas mulheres agredidas a cada hora – isso contando aquelas que registraram queixa.
No caso de Simone, antes de chegar à polícia, ela procurou o Bem-me-quer, centro de apoio à mulher localizado na região metropolitana. Na primeira visita, ela diz ter saído desanimada. “A assistente social não podia me receber na hora e voltei para casa sem solução. Pensei em ir para debaixo da ponte”, conta. Até que no dia seguinte a assistente social ligou e marcou uma entrevista. De lá, a babá já não voltou mais para casa porque os profissionais detectaram que ela corria risco iminente de morte. Simone e o filho se mudaram com a roupa do corpo para um abrigo na capital. Os celulares foram desligados, e o endereço do local mantido em sigilo até mesmo dos familiares.
Mudança. Dentro do abrigo, as mulheres começam a reescrever sua própria vida. Na capital, existe um abrigo administrado pelo Consórcio Mulheres das Gerais, por meio de convênio entre as prefeituras de Belo Horizonte, Contagem, Betim e Sabará, na região metropolitana.
Com capacidade para até 14 mulheres e seus filhos com até 18 anos, o local tem atualmente sete abrigadas. “Até 2006, a casa vivia lotada. Depois, com a Lei Maria da Penha e as medidas protetivas, o abrigamento diminuiu e só é recomendado como última alternativa”, explica a superintendente do consórcio, Ermelinda Ireno. Isso porque o processo de apoio à mulher tem como base a reaproximação da família e dos amigos, e não o seu isolamento.
“Pelo histórico que temos, sabe-se que o companheiro, durante a vida, vai isolando a mulher de todas as suas relações de afeto”, completa Ermelinda. Dentro da casa, os profissionais, formados em áreas das Ciências Humanas, desenvolvem uma intervenção individual para que a mulher se recupere física e moralmente, realizam oficinas de reflexão para tratar questões como a mediação de conflitos e trabalham em um projeto chamado “Reescrevendo o seu projeto de vida”. “Elas revivem o passado para escrever o futuro”, diz a superintendente.
Simone passou cinco meses no abrigo com o filho. De lá, saiu com um emprego fixo de babá e um local para morar na capital, mobiliado por meio de doações. “Meu nome hoje é o significado pleno da palavra liberdade. Chego em casa e faço o que quero. Isso não tem preço”, conclui a babá.
* Nome fictício
Projetos
Futuro. Simone Silva quer concluir o ensino médio e fez até a inscrição para o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem). Ela pretende fazer um curso técnico de enfermagem e criar uma campanha na internet contra a violência doméstica.
Palavra vítima não é usada em atendimento
Passar a mão na cabeça ou ficar com pena de quem vive em situação de violência dentro de casa não resolve o problema. Chamar a mulher de vítima, então, só piora o caso. É por isso que o Benvinda, único centro de apoio à mulher da Prefeitura de Belo Horizonte, tem toda uma estratégia para receber e acompanhar quem chega ao local em busca de ajuda. O objetivo da equipe que trabalha ali é fortalecer a mulher, fazer com que ela se torne protagonista de sua própria vida.
“Não usamos a palavra vítima, mas, sim, mulher em situação de violência. Nosso objetivo é mostrar que ela precisa buscar uma saída”, afirma a coordenadora do Benvinda, Daniele Caldas. O centro é formado também por duas assistentes sociais e duas psicólogas. A equipe é pequena para toda a demanda e falta um advogado para apoio jurídico.
Mesmo assim, as funcionárias se desdobram para atender a média de seis casos diários e dão orientações jurídicas básicas. “Temos capacitações, mas são poucas. Buscamos nos aprimorar por conta própria”, relata Daniele.
Fonte: O Tempo