Publicado no jornal O Tempo, por Litza Mattos, em 07/08
Maria da Penha
Farmacêutica bioquímica, natural do Ceará
Símbolo da luta contra agressão à mulher, escreveu o livro “Sobrevivi… posso contar”, publicado pela primeira vez em 2010
Vítima de violência doméstica e protagonista de uma longa e árdua batalha na Justiça brasileira para punir seu ex-marido e agressor há mais de dez anos, Maria da Penha Maia Fernandes dá nome à lei sancionada pelo presidente Lula em 7 de agosto de 2006.
Como a senhora avalia a aplicação da lei nesses 11 anos em relação aos principais avanços e desafios?
Durante esses 11 anos em que a lei está sendo aplicada, a gente tem encontrado avanços em alguns municípios, principalmente nos grandes municípios. Nas capitais brasileiras, a lei tem conseguido sair do papel e realizar sua função de proteger a mulher e punir o homem agressor. Infelizmente, a cultura machista interfere na gestão pública, e a maioria dos médios e dos pequenos municípios não possuem essas políticas públicas. Não foram criadas nem ao menos uma política pública para que a mulher tenha como se posicionar sobre sua vida de violência doméstica ou seja orientada a sair dessas situações.
Dar nome à lei é uma grande responsabilidade. Qual foi sua sensação naquele 7 de agosto de 2006, quando foi sancionada a Lei Maria da Penha?
Realmente é uma grande responsabilidade. Naquele momento, eu me senti feliz demais por saber que agora as mulheres poderiam sair de uma situação tão grave como é a da maioria das mulheres que sofrem violência doméstica no país. Desde então, eu não tenho faltado a nenhum compromisso quando sou convidada. Tenho feito inúmeras viagens pelo país todo. A minha vida particular deixou de existir. Eu sou inteiramente empenhada por essa causa, porque eu acho que nós, mulheres, devemos nos empenhar, e temos encontrado esse empenho através de promotoras, delegadas… Em algumas escolas está havendo também informações para que os jovens se conscientizem sobre a Lei Maria da Penha, informando sobre o respeito que as mulheres têm que ter em qualquer lugar que elas se encontrem. A cultura machista tem que ser desconstruída através da educação.
Em sua percepção, houve alguma mudança de postura dos homens após a lei?
A maioria dos homens me cumprimenta pela importância da lei, até porque muitos deles estão pensando no futuro de suas filhas, na garantia de um futuro sem violência para elas. Eu tenho um apreço muito grande pelos homens que se empenham nessa luta de conscientização sobre a importância da lei na vida da sociedade brasileira.
E sobre a posição das mulheres que defendem o próprio agressor, por que isso ainda acontece?
A defesa do homem agressor pela sua companheira é um fenômeno conhecido como “ciclo da violência doméstica”. Essa mulher quer que o homem volte a ser para ela o que era antes de ser violento, antes de mostrar sua valentia. E ela acredita que vai conseguir fazer com que ele volte a ser o que era. Isso é muito mais comum do que se pensa.
Que conselho a senhora dá às mulheres que não têm coragem de se separar de uma relação tóxica? Qual o primeiro passo?
Infelizmente, algumas mulheres chegam a ser assassinadas na tentativa da recuperação desse homem, por isso, nós entendemos que, no momento em que a mulher sentir-se vítima de violência doméstica, ela deve procurar o Centro de Referência da Mulher, onde terá orientação psicológica, jurídica e social. Ela vai se inteirar sobre seus direitos e estudar junto com a equipe o que poderá ser feito em prol dela mesma, para que, futuramente, tome a decisão mais consciente e saia dessa terrível situação.
Apesar dos avanços, o número de denúncias ainda é pequeno porque as mulheres ainda não confiam nas instituições ou são julgadas, muitas vezes, pelos próprios delegados. Você imaginava que a lei pudesse enfrentar tanta resistência?
Não só os delegados são machistas, mas os juízes também –, enfim, a sociedade, de uma maneira geral, é muito machista. Nós gostaríamos que, além da criação dessas políticas públicas, fossem escolhidas pessoas com mais sensibilidade sobre a violência contra a mulher e, principalmente, que esses servidores públicos que trabalham nas delegacias e na polícia, e todos os equipamentos em que a lei funciona, fossem capacitados anualmente para entender esse problema. Isso é uma questão cultural. Essas pessoas que se comportam assim foram criadas e educadas achando que o homem bater na mulher é normal, porque essa pessoa assistiu a isso na infância e na juventude, então eles repetem o que receberam. Daí, a importância da educação para a desconstrução desse machismo, como qualquer outra discriminação que existe na sociedade, que só podem ser melhoradas e eliminadas através da educação.
Você faria alguma modificação na lei hoje? Como a senhora imagina que a lei vá funcionar daqui a dez anos?
Não. A lei não precisa ser modificada. Essa lei, inclusive, foi baseada nos tratados internacionais que o Brasil já havia assinado. Se houver o compromisso do gestor público em implementar as políticas públicas que fazem com que a Lei Maria da Penha saia do papel, daqui a dez anos nós teremos uma diminuição dessas denúncias e a lei terá cumprido seu papel e continuará cumprindo. E a violência doméstica vai ter diminuído consideravelmente. É o que desejo.
Todos conhecem sua história a partir do dia em que seu ex-marido tentou lhe matar. Quem era a Maria da Penha antes disso?
Eu era uma profissional da área da saúde que conheci o meu agressor enquanto fazia pós-graduação em São Paulo. Ele também era um estudante com bolsa de estudos da universidade, porque era de origem colombiana e, de repente, eu me vi numa situação de convivência com um homem altamente agressivo. Agressividade essa que tomei conhecimento após sua naturalização. Nós tínhamos três filhas, e elas também sofreram muita violência doméstica por parte do pai, no momento em que o Brasil dava destaque para casos de mulheres assassinadas por seus companheiros principalmente na região Sudeste, apenas pelo fato de elas não quererem continuar com o relacionamento – aconteceu comigo a mesma coisa. Em maio de 1983 eu estava dormindo e acordei com um ‘papoco’ enorme dentro do quarto. Quis me mexer e não consegui. Devido à vida de opressão que eu vivia por parte dele, eu pensei imediatamente que ele tinha me matado.
O que aconteceu na sequência dos fatos?
A Secretaria de Segurança, depois de alguns meses, fez um apanhado da minha história e conseguiu descobrir que ele havia simulado um assalto e que havia sido ele quem atirou contra mim. O Poder Judiciário do meu país demorou 19 anos e seis meses para concluir esse trabalho de condenação. Ele foi por duas vezes condenado, mas por duas vezes saiu do fórum em liberdade por conta de recursos protelatórios. Ante a denúncia que nós fizemos na Organização dos Estados Americanos (OEA) e baseado nas contradições dos depoimentos dele, e também tendo como documento o livro que eu escrevi chamado “Sobrevivi… posso contar”, o Brasil foi condenado internacionalmente e obrigado a mudar as leis do país. A lei leva meu nome como homenagem simbólica sugerida pela OEA.
Fonte: O Tempo