A menina vai sair de casa com uma amiga e a mãe, vendo sua roupa, aconselha:
– Não dê o nó na camiseta; assim, sua barriga vai aparecer.
– E daí?, pergunta a menina.
– E daí que não é legal. Melhor não andar de barriga de fora por aí.
Contrariada, a menina desfaz o nó, mas antes de sair de casa posta no Facebook um gráfico, em forma de pizza, que demonstra que a culpa pelos estupros não são o clima, a roupa usada pela vítima, o álcool, mas sim os estupradores.
Está certa a menina, que já aos 14 anos entendeu direitinho a bandeira que é preciso empunhar. Está certa a mãe, que, acima do que ela acredita ser o certo, tem que proteger a filha de um mundo machista.
A amiga da menina nem percebeu, outro dia, quando um homem, aproveitando a superlotação do metrô, roçou os braços em seus peitos. Talvez o rapaz faça isso sempre, como fazem outros que esfregam seus paus nas bundas e coxas das mulheres nos ônibus e trens da vida. Foi preciso que a mãe puxasse a filha e a alertasse sobre o fato.
As duas adolescentes ainda não se deram conta do que é ser mulher. Acabam de chegar a esse mundo tão estranho e desconhecido para o macho, seja ele um homem de verdade ou um imbecil que carrega um falo. E se eles, o homem de verdade – apesar do seu esforço – ou o imbecil que carrega o falo, nunca vão chegar perto do que seja realmente esse universo, elas, as duas moças, logo, logo vão entender do que se trata.
Como criar uma menina hoje em dia, dizendo que ela tem direito sobre o seu corpo e de se vestir da maneira que quiser, ao mesmo tempo alertando sobre os perigos que ela corre simplesmente por ter no meio das pernas uma vagina?
Como, se quem deveria promover campanhas para ajudar nessa equação atrapalha, como fez o governo do Estado de São Paulo, ao fazer uma propaganda do metrô, dizendo que o transporte lotado é “bom para xavecar”?.
Como, se um colunista da maior revista do país afirma não ter “dúvidas de que ‘garotas direitas’ correm menos risco de abuso sexual”?.
Como, se uma jornalista passa a receber ameaça de estupro depois de iniciar uma campanha protestando contra a revelação de uma pesquisa, em que 65% dos brasileiros concordam que mulheres que mostram o corpo merecem ser atacadas?
Pobres mães de meninas. Bem-vindas, meninas, a esse mundo de salva-se quem puder.
E eu que esses dias me senti incomodada ao ter que compartilhar um post que afirmava: “Eu não mereço ser estuprada”. Sim, me violenta ter que dizer o óbvio, ao mesmo tempo em que me senti obrigada a tomar posição em relação a isso. E foi só quando li um outro post sobre o fato que percebi a origem do meu mal-estar.
Diz ele: “Só agora entendi a razão do meu desconforto com as frases NÓS NÃO MERECEMOS e EU NÃO MEREÇO: ambas, reativamente, tentam levar adiante uma discussão que, só por ter se originado num contexto tão previsível – pesquisas que mostram mais do mesmo –, não deveria receber maior atenção da parte não conservadora da sociedade brasileira. Pergunto: a quem se dirigem tais mensagens? A nós, mulheres e homens que fazemos parte da minoria que refuta o sexismo e TODAS as suas estratégias de controle do corpo feminino? Aos ‘indecisos’? Aos homens que, caso tenham oportunidade, partirão da ‘teoria’ à prática, no tocante ao estupro? O real avanço, quanto ao enfrentamento dos crimes de ‘natureza sexual’, só virá quando deixarmos de discutir as vítimas em potencial (por onde andam, como se vestem, que lugares frequentam etc.) e passarmos a cobrar do poder público medidas efetivas de prevenção e de efetiva PUNIÇÃO dos agressores. Mulher alguma MERECE, além do risco constante de sofrer algum dos vários tipos de agressão sexual, ser como que condenada a dizer e redizer o óbvio para uma sociedade inteiramente refratária a qualquer discurso calcado em pontos de vista divergentes em relação aos ‘valores morais’ do patriarcalismo”.
Quem escreveu foi Ricardo Aleixo, mais do que um homem de verdade, um poeta. Só os poetas mesmo têm a chave para adentrar nosso universo.
Fonte: O Tempo