Transtorno psicológico afasta um a cada três policiais em MG

Publicado no jornal O Tempo, por Letícia Fontes, em 18/06/2018

Todos os dias antes de sair para o trabalho, Luciano*, 65, ouvia o apelo da filha, que chorava e o abraçava: “Papai, você vai voltar?”. Policial militar aposentado atualmente, ele cumpriu o combinado em casa por quase 20 anos de serviços prestados. Treinado para garantir a ordem nas ruas, o ex-cabo só não conseguiu manter a “paz interna”, como costuma dizer. Em duas décadas de corporação, ele vivenciou um misto de depressão, ansiedade, desesperança e irritabilidade. “Ninguém gosta de você, só seu cachorro. As pessoas esquecem que o ser humano erra várias vezes, mas o policial não pode errar. “Enquanto todo mundo corre do perigo, a gente corre em direção a ele”, confidenciou.

Cerca de 25% dos policiais militares são afastados do trabalho por problemas psicológicos, segundo a Associação dos Praças Policiais e Bombeiros Militares de Minas Gerais (Aspra-MG). Entre os policiais civis, o índice é ainda maior: 33%, de acordo com o Sindicato dos Policiais Civis de Minas Gerais (Sindpol). Isso significa que, em média, um a cada três agentes fica de licença médica por causa de transtornos decorrentes da profissão – as corporações não divulgam dados sobre o assunto sob a justificativa de não expor a vida íntima dos servidores.

Para especialistas, os policiais civis e militares estão mais expostos a fatores que levam ao sofrimento mental, como o risco de morte e o fato de andarem armados mesmo quando estão de folga, para protegerem a si mesmos e suas famílias.

Segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 76% dos policiais já foram vítimas de ameaças em decorrência da profissão e 70% tiveram colegas mortos em serviço. “O atendimento de um policial em uma noite é assustador. Ele fica exposto a situações estressantes, toma decisões difíceis”, analisou o professor titular da Unicamp e especialista em psicologia do trabalho Roberto Heloani. Ele diz que os policiais convivem ainda com a percepção de que a população sente medo e repulsa deles.

Riscos. O agravante é que esses profissionais trabalham com arma na mão, o que potencializa o risco de cometerem violência contra eles mesmos e os outros. Só nos últimos dois meses, Minas registrou ao menos cinco casos do tipo: em abril, um PM matou a ex-companheira e sequestrou a filha em Santos Dumont, na Zona da Mata. Em maio, foram três ocorrências na região metropolitana – um policial civil matou uma mulher e duas filhas dela em Santa Luzia; um militar se matou e atingiu a companheira, em Betim, e um escrivão da Polícia Civil matou uma mulher dentro da Câmara de Contagem. Já no último dia 9, um investigador da corporação assassinou a companheira e se matou em São Joaquim de Bicas.

Segundo o especialista em segurança pública Jorge Tassi, uma pesquisa da Universidade Estadual do Rio de Janeiro aponta que o índice de suicídio de policiais é sete vezes superior ao da população geral. De acordo com ele, a desagregação familiar é uma marca entre os profissionais. “O policial vive sob constante risco, precisa fazer bico, tem problema dentro de casa, não vê a mulher e os filhos. O nível de divórcio é alto”, destacou.

Para Tassi, o profissional passa por teste psicológico para ingressar na corporação, mas as condições mudam ao longo da carreira: “Ele entra em um processo de turbilhão, toma remédio, usa droga, se mata”.

A Polícia Civil informou que oferece plano de saúde, atendimento exclusivo e especializado em hospital da corporação e centro de psicologia. A PM garantiu que faz exames periódicos e que tem um sistema de saúde capaz de atender bem o policial e suas famílias. (Com Rafaela Mansur)

* Nome fictício

Transparência

Dados. Para especialistas, faltam estatísticas confiáveis sobre o tema, e o número de policiais com transtornos pode ser muito maior que o índice de afastamentos concedido pelos sindicatos.

 Machismo dificulta acesso de servidor ao tratamento

Embora sejam muitos os casos de transtornos e violência envolvendo policiais, ainda há muito preconceito e resistência por parte dos servidores em procurar ajuda. “Existe uma cultura machista dentro das polícias do Brasil e isso influencia no comportamento do policial de não procurar o psicólogo. O policial que está em tratamento é visto como ruim, ele tem sempre que ser forte e rijo”, destacou o especialista em segurança pública Jorge Tassi.

Com isso, o sonho de ser policial, muitas vezes, acaba se transformando em sensação de fracasso. O professor da Unicamp e especialista em psicologia do trabalho Roberto Heloani relata que, em diversos estudos com ex-policiais na universidade, foi possível detectar frases como “entrei cana-brava e saí como bagaço”, dando uma dimensão de como a estrutura militar é opressora.

Heloani pontua ainda a desvantagem em ser policial atualmente. Se antes existia uma estabilidade financeira, hoje não há mais atrativos nesse sentido, segundo ele. “A atividade policial é muito dura, ser policial no Brasil é diferente de ser no Japão ou na Suíça. Muitas vezes o policial mora na mesma comunidade que o bandido”, completou o estudioso.

O presidente da Associação dos Praças Policiais e Bombeiros Militares de Minas Gerais (Aspra-MG), Marco Antônio Bahia, considera a profissão uma das mais difíceis. “Em termos de estresse, o nosso trabalho só perde para mineiros que ficam debaixo da terra lavrando minério. O policial tem que demonstrar que é forte, mas não é infalível”, concluiu.

Arma é recolhida quando há orientação médica

A Polícia Civil informou que, se um servidor apresenta algum problema médico, ele passa por uma perícia da corporação e pode ser afastado de suas funções. Ele também pode ter a arma retida. Segundo a Polícia Civil, a suspensão do porte de arma pode ocorrer por recomendação médica ou como medida cautelar em processo administrativo disciplinar.

Quando o policial se envolve em algum crime, ele passa a ser investigado pela Corregedoria Geral da Polícia Civil. Em caso de comprovação de condutas irregulares de seus servidores, são aplicadas punições, que podem resultar em exoneração.

A Polícia Militar também informou que tem uma corregedoria atuante para verificar a conduta dos profissionais e o clima organizacional.

“O serviço policial não submete a pessoa ao suicídio, mas faz reverberarem processos de carência e eleva o nível de tensão.”

Jorge Tassi

Especialista em segurança pública

“Lido com as vidas de outras pessoas, com a de minha família e a minha também.”

Policial Civil, 29

Na corporação há 6 anos

Fonte: O Tempo