Preconceito racial não ficou no passado.

Preconceito racial não ficou no passado

Um apelido pejorativo, uma perseguição dentro do shopping e até mesmo uma agressão física justificados pela cor da pele. Há quem diga que tudo isso é exagero, coisa do passado, mas em pleno século XXI essa ainda é a realidade que grande parte da população brasileira enfrenta diariamente. Presos a uma ideia preconceituosa de negros como seres inferiores, muitas pessoas continuam praticando, às vezes veladamente, atitudes raciais discriminatórias.

Enquanto a prática persiste, a Lei 7.716, que define os crimes resultantes de discriminação e preconceito racial, completou 25 anos neste mês. Mas nem mesmo a possibilidade de pena de reclusão tem conseguido frear os incontáveis exemplos de atitudes racistas em todo o país.

Embora as histórias se repitam a todo momento, as denúncias ainda são tímidas: em todo o ano passado, apenas 147 ocorrências de preconceito de raça ou cor foram registradas em Minas Gerais, segundo dados da Secretaria de Estado de Defesa Social (Seds).

Na contramão dos registros, os exemplos são muitos por todo o país. Há menos de dois meses, um grupo de negros foi repreendido pela polícia ao se reunir em um shopping de Vitória (ES), após o encerramento de um baile funk. Em São Paulo, uma professora universitária negra foi hostilizada pelo dono de um restaurante, e no Rio de Janeiro, uma criança negra de 7 anos, filha de um casal branco, foi expulsa de uma concessionária de luxo, tendo a empresa alegado um “mal-entendido”.

Nos últimos dias, porém, o debate tem voltado à tona, graças aos chamados “rolezinhos” – encontros agendados pelas redes sociais que têm reunido jovens em shoppings por todo o país. Em São Paulo, liminares da Justiça autorizaram os estabelecimentos a proibir a entrada dos grupos, como ocorreu anteontem em Contagem, na região metropolitana. Menores só foram liberados mediante a apresentação de documentos e acompanhados de pais ou responsáveis. Na capital mineira, muitos adolescentes alegam ter sido revistados em função de sua aparência.

A polêmica ganhou corpo e foi noticiada, na semana passada, pelo jornal francês “Le Monde”, que criticou o fato de o brasileiro se orgulhar de não ser racista, mas fazer piadinhas com negros.

“Existe uma ideia pré-definida de que os negros são perigosos e potenciais ladrões que ‘justifica’ atitudes racistas, como, por exemplo, do segurança que aborda negros no shopping achando que são suspeitos”, explica o sociólogo e professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Rodrigo Ednilson de Jesus, que é também coordenador do programa Ações Afirmativas da universidade. “Esse tipo de preconceito está introjetado na cabeça das pessoas e muitas vezes é reforçado por filmes, novelas e propagandas”, complementa.

Segundo o professor, o problema é que, por a ideia já ser tão forte e comum, muitas pessoas não percebem que estão sendo racistas. “Existe a imagem de que os negros, mesmo sem demonstrar, são potenciais suspeitos e podem oferecer perigo, não por intenção, mas porque sua natureza determina esse comportamento”, diz.

Enfrentamento. Inaugurado no fim de novembro, o Núcleo de Atendimento à Vítimas de Crimes Raciais e de Intolerância da Polícia Civil vem aumentando seu atendimento. Foram cinco demandas atendidas no mês passado, contra sete apenas na primeira quinzena de janeiro.

“Fazemos o acompanhamento individualizado de cada caso, inclusive para saber se determinado registro de agressão, por exemplo, teve motivação racial. Tentamos caracterizar bem ao encaminhar para a delegacia competente, para ter uma resposta mais rápida”, afirma o gerente do núcleo, Jefferson Rodrigues de Oliveira.

Combate ao crime pela internet

Viral. 0 Na internet, o vídeo “Por que você não alisa?”, que traz um depoimento da jovem Abigail Ekanola sobre a desnecessidade de utilizar produtos químicos para analisar cabelos crespos, tem feito bastante sucesso. “Eu não preciso me encaixar em um padrão para me sentir bela”, diz a jovem. Publicado no dia 8 de janeiro no YouTube, o vídeo já teve mais de 13 mil visualizações.

Exemplo. 0 Outra gravação semelhante, publicada há seis meses, traz o depoimento da menina Júlia ensinando a gostar de seus cachos. Quase 300 mil pessoas assistiram ao vídeo.

Legislação

Punição. Pela lei, tanto a prática de racismo (ofensa contra grupos), quanto a de injúria racial (contra um indivíduo) são consideradas crime. As penas podem variar de um a cinco anos de reclusão.

“A sociedade se acostumou a ver negros como empregados e faxineiros”

Depoimento

“A sociedade se acostumou a ver negros como empregados e faxineiros”
ESPECIAL CIDADES

Depois de passar por uma situação desagradável no começo de dezembro, quando, durante uma roda de conversa sobre pedagogia libertária, sua música teria sido taxada como uma “expressão de subcultura”, o DJ Dú Pente, 25, começou a se reunir com um grupo que, trocando experiências, pretende criar um coletivo negro e independente em Belo Horizonte.
Segundo ele, a ideia, que ainda está sendo amadurecida, surge devido ao “silenciamento que nós negros somos submetidos em espaços racistas”. A terceira reunião do grupo, de aproximadamente 15 pessoas, aconteceu na noite da última terça-feira, embaixo do viaduto Santa Tereza, no centro da capital.

Segundo integrantes, diferentemente do que se pensa, atitudes racistas não são casos isolados ou esporádicos, mas acontecem com todos os negros, o tempo todo. “Estamos falando de um racismo que é estrutural e institucional”, diz Dú Pente.

“E são muitas as tentativas de abafar e minimizar os casos, que caem na história de que o racismo não existe”.

Dú Pente afirma que há no Brasil um “mito da democracia racial” que justifica as atitudes racistas de muitas pessoas. “Mas se há democracia, cadê a inserção no dia a dia?”, questiona. “Faça o teste do pescoço e olhe ao redor. Estudei comunicação social na Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas) e nunca tive sequer um professor negro”.

“Nos protestos, a polícia me parou, mas não o meu amigo branco”
 

“A gente tem um costume de achar que o racismo não existe no Brasil. Nós todos, desde crianças, nos meios em que vivemos, somos influenciados a pensar que isso é coisa da nossa cabeça. Mas quando a gente vê algumas situações, a gente percebe de forma mais ampliada que existe preconceito sim”, afirma o ator Alexandre de Sena, 35, que foi vítima de uma agressão policial quando participava de um festival internacional de teatro em Blumenau (Santa Catarina), em julho de 2011.

 

 
RACISMO


Alexandre estava em um posto de gasolina com amigos, bebendo e conversando, quando chegou uma viatura policial no local. Um dos poucos negros presentes, o ator foi o único agredido, por dois policiais, que, segundo ele, gritavam: “Aqui não é o seu lugar. Vaza negão”. Ao ser atingido por um tapa na orelha direita, Alexandre teve 60% da superfície do tímpano rompida, além de ter recebido diversos golpes no peito. “Eu estava no meio teatral, e a maioria estava ali por causa do festival. Então, de alguma forma, eu me sentia protegido, coisa que geralmente quem sofre discriminação não sente”, conta.

A situação foi denunciada inclusive na corregedoria da polícia, mas até hoje, mais de dois anos depois, Alexandre não teve notícias sobre a apuração da conduta dos policiais. “O que aconteceu comigo em Blumenau me deu uma vontade de fazer com que aquela história não fosse só minha”. Ao retornar para a capital mineira, o ator participou da criação e apresentação de diversas performances e espetáculos teatrais denunciando o preconceito e a discriminação racial. “Parto do princípio de que a informação é preciosa para se combater o racismo”.

Apesar da agressão física, a maior revolta, porém, é em relação às agressões morais cotidianas. “Acontece frequentemente de eu entrar em uma loja, e o segurança me seguir ou de ir em restaurante e não ser tão bem recebido pelo garçom. Isso é muito velado”, diz. “Em junho, durante as manifestações, estava andando com amigos em direção à praça Sete, no centro de Belo Horizonte, quando avistamos uma abordagem policial. Como eu previa, pararam-me, mas não abordaram o meu amigo branco”.

Para ele, os recentes “rolezinhos” são exemplo da presença da discriminação racial no Brasil. “Incomoda muita gente ver essas pessoas no mesmo patamar que elas. Isso porque a sociedade está acostumada a ter pessoas iguais a mim servindo, seja como empregadas, garçons, faxineiros. Ninguém fala que é racista, mas no fundo tem atitudes assim”.

Com discurso e prática tão distantes, Dú Pente acredita que é preciso lutar. Segundo ele, são muitos os lugares onde os negros e os pobres, além de oprimidos e excluídos, são invisíveis.

“Isso é cruel. Se eu não falar todo dia, vou esperar quem falar por mim? O negro sente na pele o preconceito. Mas é preciso conseguir assimilar e fazer disso força para bater de frente no sistema. É um processo de desconstrução permanente”, ressalta.

“Temos o pior tipo de racismo que existe: o que ninguém vê”

“Por ser negra e mulher, tenho diversas histórias. Racismo e machismo se combinam”, disse à reportagem uma universitária, de 27 anos, que preferiu não se identificar. A estudante, que já foi vítima de agressão dentro da universidade onde estuda, se recorda de um dia quando, ao entrar em um shopping da capital, foi obrigada a apresentar seu documento de identidade. No mesmo momento, uma mulher loira da mesma idade, que entrava ao lado, passou direto sem ser abordada.
 

“Nós temos no Brasil o pior tipo de racismo que existe. É um racismo velado, escondido, que ninguém vê, mas que acontece”, critica. “A sociedade está o tempo todo tentando abafar e silenciar a opressão, invertendo a situação e culpando o negro”.

Em sua visão, é preciso dar visibilidade a tantas atitudes racistas e preconceituosas que acontecem cotidianamente nas cidades. “Tanto o Estado quanto a mídia contribuem para esse racismo velado e institucional, construindo o modo como as mulheres são retratadas. A imagem da Globeleza na TV, por exemplo, é uma mostra da hipersexualização da mulher negra como produto de exploração sexual”, avalia.

Segundo ela, isso também acontece quando muitos a chamam de morena, em uma tentativa de ‘esbranquiçar’ sua cor. “Não sou morena, sou negra. Temos essa identidade e queremos sensibilizar quem não se reconhece assim”.

“A cada virada e a cada escada, éramos escoltadas por seguranças”

Há alguns anos, a professora de balé Katia Cruz, 47, passou por uma situação bastante constrangedora em um shopping da capital mineira. Ela levava ao cinema um grupo de quase 20 bailarinas, entre 10 e 15 anos, que eram suas alunas de uma oficina de dança no Aglomerado da Serra, na região Centro-Sul de Belo Horizonte, quando foi barrada pelos seguranças logo na entrada do estabelecimento. Katia só conseguiu entrar com suas alunas quando apresentou aos seguranças os ingressos para o filme, ao qual tinham sido convidadas a assistir. Apesar disso, o grupo foi vigiado e seguido durante todo o trajeto que percorreu dentro do shopping.
 

“A cada virada e a cada escada, éramos escoltadas por vários seguranças. Foi extremamente inconveniente e desagradável”, lembra a professora. “Parecia que minhas alunas fugiam do padrão estético visual dos tradicionais clientes daquele shopping”.

E a situação não se limitou aos centros comerciais. Katia conta que até hoje, em alguns teatros e espaços culturais em que leva seu grupo de alunas negras, é nítido como elas são encaradas, “como se tivessem alguma doença contagiosa”.

“São situações totalmente gratuitas, simplesmente porque as meninas diferem de um padrão visual que as pessoas habitualmente recebem em determinados lugares. É muito triste”, lamenta.

Fonte: O Tempo