PMs lancham e almoçam de graça em troca de segurança a comerciantes
A atendente da padaria termina de registrar as compras de um cliente e percebe a aproximação do militar. Um policial alto, de farda, colete preto e pistola na cintura surge com um salgadinho e uma lata de refrigerante nas mãos. Pergunta o preço. “Respondi e ele riu. Disse que agora estava patrulhando as ruas do bairro. Saiu e foi mexer nas prateleiras”, lembra a mulher. Não demorou muito e o militar retornou. Dessa vez sério, se aproximou pela lateral do caixa. Intimidador, refez a pergunta sobre o valor do lanche, acrescentando um breve relatório de suas funções e chegando mais perto. “Estamos passando nas ruas direto. Se precisar, é só ligar. Temos de ficar mais perto das lojas e ajudar vocês”, recorda a funcionária, reproduzindo a fala do PM. “Quanto é (que custa) mesmo?”, perguntou pela terceira vez o militar fardado. Constrangida, quase encolhida na cadeira diante da pressão do servidor público que deveria proteger os cidadãos, a atendente acabou por ceder: “Não custa nada, não”. Foi assim que começaram os abusos de policiais numa padaria do Bairro Ouro Preto, na Região da Pampulha. Os diálogos variam, os pontos também, mas a extorsão velada está espalhada pela cidade. Diante dela, inseguros, comerciantes se veem obrigados a fornecer de sorvetes a refeições para manter a polícia por perto e os assaltantes mais longe. Uma relação viciada que ocorre amplamente na capital mineira e na Grande BH, deixando indefeso quem nada tem a oferecer.
Em apenas quatro dias, o Estado de Minas encontrou 10 estabelecimentos que praticam “permutas” de alimentação por segurança com policiais militares, entre Belo Horizonte e Contagem, na Grande BH. Desses, seis permitem que os funcionários públicos consumam irrestritamente os artigos que vendem, dois fornecem kits de lanches já preparados para os militares levarem e dois foram intimidados a conceder a “boca-livre” por medo de ficar sem segurança. É preciso desatacar, no entanto, que a conduta não é regra, pois muitos policiais foram vistos pagando pelo que comiam e bebiam, mas há indícios de que é disseminada em parte considerável da tropa. Na cidade de São Paulo, o movimento é tão comum que os policiais receberam o apelido pejorativo de “coxinhas”, numa alusão aos salgados que consomem de graça. Os “coxinhas mineiros” não são diferentes: uns têm acordos com comerciantes, outros “tomam” o que querem em nome da continuidade das patrulhas.
PM vai investigar abuso de militares no comércio da capital Entidades condenam regalias de policiais militares Restaurante tem acordo há 12 anos com policiais que comem sem pagar
Na padaria do Bairro Ouro Preto em que a atendente foi intimidada e passou a permitir que os policiais saíssem com pães de queijo, salgadinhos, cafés e refrescos sem desembolsar nada por isso, a equipe do EM presenciou a chegada dos militares da região, responsáveis pelo patrulhamento do bairro. Pararam a viatura sobre o passeio e entraram. Cumprimentaram a funcionária do caixa, sorriram para as mulheres que abasteciam as prateleiras de pães e seguiram para o freezer. Sem qualquer cerimônia, pegaram refrescos e salgadinhos. Ao lado do caixa, trocaram duas palavras, um ou dois sorrisos com a responsável por registrar as compras. A mulher respondeu com um sorriso amarelo e eles se foram. “Tem vez que (os policiais) vêm e pagam. Outros (militares) saem sem pagar, mesmo. A gente fica aqui assim, sem poder fazer nada”, diz a mulher. Quase murmurando, ela conta que o patrão não permite fornecer nada aos policiais, mas confessa que fica “sem graça” de impedir a atitude.
A frequência de lanches gratuitos de policiais militares numa pequena padaria e armazém da Avenida Américo Vespúcio, no Bairro Ermelinda, Região Noroeste de BH, também começou com a pressão dos PMs que fazem a segurança das imediações. “Para não levar muito prejuízo, a dona (do estabelecimento) resolveu falar para os soldados anotarem e pagarem por mês. Mas é só de vez em quando que anotam. Mesmo assim, nunca pagam o que devem. Já desistimos”, diz a atendente. Minutos depois de a funcionária falar sobre a situação, uma dupla de policiais deixou a viatura sobre o passeio e entrou na padaria. Os dois sentaram-se, comeram salgados e beberam refrigerantes. Ficaram mais de 15 minutos degustando o lanche e conversando sobre a prisão de um menor. De repente se levantaram, olharam em volta, abriram sorrisos para as funcionárias e saíram sem anotar nada. “Esses aí (os dois militares) vêm aqui todos os dias e não pagam nada”, conta a balconista.
Em outra padaria, na Avenida Contagem, Bairro Santa Inês, Região Leste de BH, policiais têm total acesso aos produtos expostos. Os militares da patrulha do bairro posicionam as viaturas sobre o passeio, bem em frente ao estabelecimento, e deixam o veículo com as luzes girando. “Nossa! Que sede! Me dá uma água.” Quem fala é um cabo da PM, dirigindo-se à garçonete no balcão. Ela volta com um copo cheio de água. O militar bebe e puxa um assunto corriqueiro, falando sobre os vizinhos. As funcionárias da loja entram na conversa e, enquanto isso, ele escolhe os salgadinhos de que mais gosta e pede uma lata de refrigerante. O papo prosaico segue em meio ao movimento dos clientes que entram e compram pães e mantimentos.
Aparentando estar satisfeito, o militar caminha para o caixa, mas não é para pagar. Antes mesmo que ele diga qualquer coisa, a funcionária que opera a máquina registradora se abaixa e pega uma embalagem com vários maços de cigarros abertos. Ela sabe que, depois de comer, o policial gosta de fumar na porta da loja. A venda desse produto a granel é proibida por lei, mas a mulher não se preocupa com isso. Antes que o policial peça, ela entrega a caixa para que o homem fardado escolha. Isso garante pelo menos mais 10 minutos de presença da polícia em frente ao estabelecimento, o tempo que o militar leva para consumir o cigarro e ir embora. “Aqui eles podem pegar o que quiserem. Para mim é bom, porque a gente fica mais seguro. Antes tinha muitos assaltos. Foram dois roubos só no fim do ano”, diz a funcionária da registradora, revelando um outro lado da boca-livre da segurança: a dos comerciantes que estimulam a troca de produtos por uma deferência especial do policiamento, que deveria ser coletivo.
O que diz a lei
As atitudes de policiais que se beneficiam de alimentação e agrados de comerciantes para favorecer a segurança num ou noutro estabelecimento ferem ao Código de Ética e Disciplina da Polícia Militar de Minas Gerais, contido na Lei 14.310 de 2002 e ao Código Penal Brasileiro. Policiais que constrangem comerciantes para obter vantagem incorrem em crime de concussão, definido pelo código penal como ato de exigir para si ou para outrem, dinheiro ou vantagem em razão da função, direta ou indiretamente, ainda que fora da função ou antes de assumi-la, mas em razão dela, vantagem indevida. A pena é de reclusão, e vai de dois a oito anos. Há ainda a pena de multa, que é cumulativa com a de reclusão. Os policiais que se corrompem para receber favores incorrem em crime de corrupção passiva, ou “solicitar ou receber, para si ou para outros, direta ou indiretamente, ainda que fora da função ou antes de assumi-la, mas em razão dela, vantagem indevida, ou aceitar promessa de tal vantagem”. Os comerciantes que oferecem os benefícios incorrem em corrupção ativa, que é “oferecer ou prometer vantagem indevida a funcionário público, para determiná-lo a praticar, omitir ou retardar ato de ofício”. Os dois crimes são punidos com pena de reclusão, de 2 a 12 anos, e multa.
Fonte: Portal do Jornal Estado de Minas, 19 de setembro de 2012