Mobilidade urbana e direitos humanos no centro do debate.

Mobilidade urbana e direitos humanos no centro do debate.

“Quem não estiver confuso, não está bem informado”, afirma uma das várias frases que vêm circulando nas redes sociais desde a eclosão de grandes manifestações populares iniciadas no último dia 13 de junho. Em permanente transformação desde a sua origem, tais manifestações têm mobilizado, de alguma maneira, todo o país, e isso, é claro, não deixa de fora aqueles que dedicam suas vidas à arte e à cultura.

Se ainda são incertos os desdobramentos políticos das manifestações populares, é evidente que algumas reivindicações defendidas no decorrer dos protestos ganharam ressonância entre vários setores da sociedade brasileira, fazendo ecoar questões sociais até então encerradas aos arredores de movimentos políticos específicos.
Foram, afinal, o Movimento Passe Livre e a questão da mobilidade urbana que deram início aos protestos e seguem como uma de suas principais bandeiras, endossada pelo professor e pesquisador Luiz Carlos Garrocho, ex-diretor dos teatros municipais de Belo Horizonte.

“Eu mesmo uso o transporte público e, como muita gente, vejo as filas quilométricas que se formam nos pontos de ônibus todos os dias. Vejo as pessoas cansadas, à noite,
passando horas dentro dos ônibus. E o que se percebe é que não há nenhuma preocupação do governo com a qualidade desse serviço”, constata Garrocho.

“Talvez por isso o protesto, iniciado por um movimento social específico, em São Paulo, tenha alcançado de modo tão imediato a adesão daqueles que são diariamente privados da própria cidadania, do próprio direito à cidade”, pondera.

Também o músico Makely Ka destaca o debate sobre mobilidade como algo que deve se manter no centro da discussão. “A questão do passe livre precisa ser entendida como uma proposta visionária que interessa a todos nós. A gratuidade do transporte público gera uma lógica de apropriação e de circulação nas cidades que altera a maneira como as pessoas habitam os espaços onde vivem”, defende o músico.

“A partir desse princípio, as pessoas podem matricular seus filhos nas escolas de melhor qualidade – e não naquelas mais próximas de suas casas, assim como frequentar mais espaços culturais, por exemplo. Deve se considerar, nesse sentido, até mesmo um impacto econômico positivo, já que o dinheiro passa a circular mais nas cidades, em vez de se destinar aos monopólios das empresas que controlam o transporte público em várias partes do país”, argumenta.

Contraste. Tanto Makely quanto Garrocho destacam que a falta de investimento em mobilidade urbana chama ainda mais atenção quando contrastada aos grandes esforços destinados à construção de estádios para a onipresente Copa do Mundo.

“Não por acaso, integrantes do Comitê Popular dos Atingidos pela Copa rapidamente aderiram às manifestações, questionando justamente os imensos gastos estatais com o evento em um país marcado por graves problemas de infraestrutura e serviços públicos. A tudo isso ainda se acrescenta um questionamento relacionado à soberania do país, com uma organização estrangeira (a Fifa) mantendo aqui dentro um território onde nós somos proibidos de entrar”, contesta.

O músico Dudu Nicácio, por sua vez, associa a discussão à importância de se defender os direitos humanos como um todo, sobretudo em meio às grandes obras que têm sido feitas no país tomando a mesma Copa do Mundo como principal justificativa.

“O que mais me chama atenção diz respeito aos procedimentos de higienização das cidades, com a remoção dos moradores de rua, assim como dos habitantes de vilas e favelas. Trata-se de questões fundamentais, que não devem ficar em segundo plano”, afirma ele, também integrante do Programa Polos de Cidadania da Faculdade de Direito da UFMG.

Além desses questionamentos, em certo sentido presentes desde a origem das manifestações populares, outra questão acabou ganhando vigor com o desenrolar dos acontecimentos. Trata-se da própria possibilidade de se manifestar, inicialmente cerceada pela polícia e, mais recentemente, por grupos conservadores.

“Mesmo revelando a fragilidade da máquina política brasileira, as manifestações me parecem muito importantes no sentido de indicar que o povo não está morto, nem quer continuar omisso e acomodado. O que tivemos, no início dessa história, foi uma ruptura com quase duas décadas sem grandes mobilizações em relação a uma série de abusos da máquina governamental brasileira sobre a população do país”, analisa o professor e pesquisador Marcos Hill.

Mudança. Inicialmente otimista com a atitude de milhares de pessoas que foram às ruas lutar por seus direitos, a diretora do Grupo Oficcina Multimédia, Ione do Medeiros, mostrou-se receosa em relação aos últimos desdobramentos das manifestações, quando militantes de movimentos que há anos lutam por justiça social foram atacados por outros grupos presentes nos mais recentes protestos.

“Há, sim, um descontentamento muito grande e uma tendência de culpar o atual governo. Mas as condições precárias e injustas que nós enfrentamos hoje não são consequência apenas dessa administração. Trata-se de um panorama que vem se arrastando há muito tempo, talvez isso seja o que ninguém mais suporta”, defende.

“Ao mesmo tempo em que entendo parte do movimento como uma tomada de consciência política, eu me pergunto até que ponto a adesão de todas essas pessoas é significativa. Até que ponto isso não é apenas algo marcado por ideias superficiais, baseadas em uma cultura de Facebook?”, completa a artista.

Apesar de tantas incertezas, Ione chama atenção para uma mudança concreta do brasileiro face ao presente. Pela primeira vez, observa, a comemoração das vitórias da seleção brasileira na Copa das Confederações tem ficado em segundo plano face aos acontecimento políticos.

“Há, nisso, uma espécie de desmistificação da ideia de que o futebol é uma paixão nacional, custe o que custar. Agora vemos que não é bem assim. As pessoas estão questionando os gastos com a Copa e todas as exigências impostas pelos realizadores do evento. No fim das contas, essa parece ser uma cultura muito mais forjada do que real”, frisa.

Fonte: O Tempo