Do sonho ao vandalismo e à brutalidade
Manifestantes de movimentos sociais voltam às ruas das grandes capitais e são reprimidos com uma truculência injustificável e desproporcional, que não é vista desde os tempos da ditadura.
PRAÇA DE GUERRA
Na quinta-feira 13, PM cerca manifestantes na rua da Consolação, em São Paulo,
que protestavam pacificamente e usa balas de borracha e bombas de gás lacrimogêneo
Num país onde é frequente ouvir-se a queixa de que a sociedade sofre de profunda apatia, mostrando-se incapaz de mobilizar-se para defender seus interesses e encarar seus problemas de frente, a mobilização social de uma massa de estudantes e jovens trabalhadores de São Paulo deveria ser saudada como um exemplo de cidadania. Após quatro dias de protestos, contudo, surgiu em São Paulo uma situação hostil, assustadora e perigosa. Incapaz de atuar de forma preventiva, controlando as manifestações com métodos civilizados e fazendo uso consciente e responsável da força quando necessário, na última quinta-feira 13 a Polícia Militar de São Paulo retornou aos piores momentos de seu passado, quanto reprimia a população sob o regime militar para acuar e atacar militantes. Em meio à pancadaria, ocorreram 325 prisões e 105 pessoas ficaram feridas. Manifestantes foram alvejados com balas de borracha, bombas de gás e perseguidos pelas ruas da região central até tarde da noite. Atacados seletivamente, vários jornalistas acabaram feridos. Um deles, atingido no olho por um projétil emborrachado, corre o risco de perder a vista.
O retorno da Polícia Militar a sua face mais violenta ocorreu num dia que até prometia uma jornada de calmaria. Num esforço para evitar a confusão da quarta-feira 12, quando 97 ônibus foram depredados, dezenas de vitrines foram quebradas e até um policial correu o risco de ser linchado, numa sucessão de atos condenáveis promovidos por baderneiros mascarados, infiltrados entre os manifestantes, autoridades e ativistas fizeram um acordo para realizar uma passeata em percurso autorizado. Já no início da tarde, no entanto, se viu que nem todas as partes pretendiam cumprir o combinado.
SEM COMANDO
Policial lança gás de pimenta contra cinegrafista no centro de SP
Numa concentração marcada para o Teatro Municipal, que pretendia arregimentar quem estava interessado em participar do protesto autorizado, a polícia dava uma demonstração de desenvoltura excessiva ao realizar 40 prisões “para averiguações”, eufemismo clássico para atos abusivos .“Quando fui perguntar por que dois conhecidos estavam sendo detidos, me advertiram: ‘Não faz muitas perguntas se não levamos você também,” conta o professor Lucas Oliveira, 28 anos, um dos porta-vozes do Movimento Passe Livre, entidade que cumpre, na luta por melhorias no transporte público, um papel semelhante ao que o MST assumiu na luta pela reforma agrária. Horas mais tarde, perseguido pela tropa de choque quando liderava uma passeata em outro ponto da cidade, Lucas Oliveira teve a canela ferida por uma bomba, sendo levado a um pronto-socorro.
Falta ação da polícia para reprimir o crime, mas sobra
força para repreender a população de forma arbitrária
Apesar destes percalços, o acordo parecia de pé. Tanto que a passeata autorizada realizou-se sem maiores atropelos, na área demarcada. Mais tarde, quando a caminhada atingia a rua da Consolação, ocorreu um episódio que faz parte do figurino de todo ato de protesto que se preze. Depois de cumprir o combinado, tentou-se ir mais além. Não é uma demonstração de cavalheirismo, nem de amor a palavra empenhada, mas faz parte do jogo tanto por parte de quem organiza protestos como de quem presta serviços policiais. A faísca acendeu ali. A PM poderia ter assumido duas atitudes razoáveis. Manter a avenida bloqueada, impedindo que a marcha seguisse em frente, nem que fosse preciso pedir reforços. Ou poderia, num ato de insólita cortesia, abrir passagem para os manifestantes. Não se fez uma coisa nem outra. Quando lideranças do movimento tentavam negociar uma nova autorização, soldados da Tropa de Choque começaram os disparar tiros com balas de borracha. Bombas e até granadas foram atiradas sobre os manifestantes, que se dispersaram em correria pela rua mais célebre da boemia de São Paulo, a Augusta, onde foram atacados mais uma vez. Num esforço repetido de concentração e dispersão, sempre com policiais em seu encalço, a passeata seguiu em grupos menores, até tarde da noite. Ainda em atividade, a polícia importunou casais de namorados em bares da avenida Paulista. Passageiros de um ônibus foram atingidos por uma bomba de gás. Motoristas abandonaram os carros nas ruas, assustados. Num reflexo típico de tempos autoritários, a PM investiu com dureza seletiva sobre jornalistas presentes. A fotógrafa Giuliana Vallone, da Folha de S. Paulo, tomou um tiro de bala de borracha no olho. Outro fotógrafo também foi alvejado com maior periculosidade e na sexta-feira 14 corria o risco de perder uma vista.
…Enquanto isso, em Paris
Em meio à crise nas ruas, o prefeito paulistano Fernando Haddad, o vice-presidente
Michel Temer e o governador de São Paulo, Geraldo Alckmin,
encontravam-se em Paris na terça-feira 11 em solenidade
Com tamanha brutalidade, a atuação da Polícia Militar ameaça dar um novo caráter à luta contra o reajuste da passagem. Mobilização realizada em nome de uma reivindicação social legitima, que deve ser discutida de forma civilizada e a partir de argumentos racionais, a repressão coloca em pauta o direito de cada cidadão pela liberdade de defender seus interesses. Conflitos políticos que fogem dos padrões da boa educação confundem o raciocínio e costumam ser avaliados mais pela coreografia do que pela substância. A passagem de ônibus teve um reajuste de 6,7% contra uma inflação de 15% desde o último aumento, de janeiro de 2011. O reajuste pode parecer razoável no visor de uma calculadora, mas está longe de ser uma questão simples.
Num cálculo do DIEESE, realizado em Porto Alegre, mas que tem semelhança com o que aconteceu no país inteiro, as passagens subiram 670% de 1994 para cá – contra uma inflação de 281%. Nesse ritmo, um cidadão paulistano que anda de ônibus duas vezes por dia e paga a passagem com dinheiro do próprio bolso deixa, na catraca, o equivalente a três meses de salário mínimo por ano. É uma boa quantia, mesmo quando se recorda benefícios recentes como o bilhete único e o vale transporte, que transfere grande parte do custo das passagens de funcionários de baixos salários, com registro em carteira, para a empresa. O encarecimento dos transportes tem levado um número cada vez maior de pessoas a andar a pé pelas grandes cidades. Falta-lhes dinheiro até para embarcar numa sardinha em lata nas horas de pico.
CAVALARIA INCONSEQUENTE
Na rua da Consolação, em São Paulo, polícia montada parte pra cima de manifestantes na quinta 13.
Desta vez, não havia os tumultos provocados por minorias no dia anterior (abaixo)
Embora os aumentos de passagem sejam alvo de descontentamento desde que os primeiros ônibus passaram a circular no país, ainda no século passado, não é uma surpresa que há pelo menos uma década os movimentos contra os reajustes tenham-se tornado um costume nacional, com altos e baixos em cada lugar. Em 2003, Salvador ficou paralisada por dez dias até que a prefeitura cedesse 9 das 10 reivindicações apresentadas pelos líderes do movimento. Em Florianópolis, os protestos conseguiram revogar dois aumentos, em 2004 e 2005. Em Vitória, isso já aconteceu uma vez. Mirando-se no exemplo paulistano, que preferem ver longe de seus domínios, outros prefeitos resolveram agir antes que fosse tarde. Em Curitiba, o preço da passagem foi reduzido em dez centavos. Em Goiânia, depois de subir para R$ 3,00 ela retornou para R$ 2,70. Em Manaus, houve um aumento de R$ 2,75 para R$ 3,00, mas o preço agora é R$ 2,90. Em Cabo Frio(RJ), a população vale-se do subsídio da prefeitura e paga apenas R$ 0,50 pela passagem dentro do perímetro do município.
O cidadão que anda de ônibus duas vezes ao dia deixa na
catraca três salários mínimos por ano. há razões para protestar
Nos últimos anos, a sucessão de protestos levou ao surgimento, em vários pontos do país, do Movimento Passe Livre, uma federação de estudantes – muitos já se formaram desde então – com ideias esquerdistas de várias famílias, e uma prática de quem rejeita toda submissão a partidos políticos. Em São Paulo, o MPL tem raízes entre universitários da USP e estudantes de estabelecimentos frequentados por uma elite cultural de esquerda, como Escola da Vila, Vera Cruz, Oswald e o Colégio Equipe, mas é o centro nervoso de uma articulação maior e mais popular, com conexão com sindicatos e entidades da periferia. Seus encontros reúnem militantes selecionados, funcionando de acordo com princípios de horizontalidade. Não há hierarquia formalizada. Todos têm direito a usar a palavra pelo tempo desejado por cada um – e por essa razão alguns debates podem prolongar-se por até 12 horas. As deliberações não são obtidas pelo voto, mas por um esforço permanente para se obter consenso. Praticantes de uma escola política que tem suas origens em movimentos radicais do século XIX, eles cultivam uma utopia urbana radical. Condenam o que chamam de “ mercantilização” do transporte público e defendem a cobrança de tarifa zero – isto é, o transporte gratuito. Este sistema que costuma funcionar em cidades menores, em especial na Europa e em alguns estados norte-americanos, também foi implantado em três cidades brasileiras. São localidades pequenas, como Agudos, em São Paulo, Porto Real, no Rio, e Ivaiporã, no Paraná. A população de todas elas, somadas, não chega a 100 000 habitantes. Quando era prefeita de São Paulo, Luiza Erudina chegou a elaborar uma proposta de tarifa zero, mas não levou o projeto adiante. Em público ou em conversas reservadas, os militantes do MPL condenam atos de vandalismo como uma espécie de contra senso, pois prejudicam aquilo que gostariam de preservar – que são estações de metrô, pontos de ônibus e o espaço público em geral. “A gente não apoia nenhum tipo de depredação, seja de ônibus ou de estação de metrô”, diz o universitário Caio Martins Ferreira. “Tentamos conter, mas é difícil. A gente não é dono de ninguém para dizer quem deve fazer o que,” diz.
Os episódios de vandalismo que acompanham os protestos envolvem pessoas de outra origem, que trafegam um universo no qual a violência é um culto permanente, embora possa ser empregada de formas variadas. Ora pode ser um caminho para um acerto de contas entre turmas rivais, ora pode até apresentar um conteúdo político. São os chamados anarco-punks, um tipo de ativismo nascido nos bairros operários que enfrentavam as medidas de austeridade de Margareth Tatcher nos anos 1980, e que se tornou moda no Brasil uma década depois. Em dias normais, o esporte predileto dos anarco-punks é trocar pauladas com os skin-heads, inimigos irredutíveis e violentos. Em dias de mobilização política, como aconteceu em São Paulo por esses dias, comandam o quebra-quebra.
Com outros nomes e rostos, mas um ideário parecido, eles já apareceram em outros lugares. Na quinta-feira, eles surgiram entre as mobilizações em Porto Alegre. Picharam 21 lojas, depredaram seis agências bancárias, reviraram 40 containers de lixo. Em situação semelhante, 2 mil pessoas organizaram um protesto no Rio, no mesmo dia. O início foi pacífico, mas, no final, ocorreram cenas de baderna e confronto. Há dois anos, anarco-punks fizeram sua aparição à frente de uma sequência de atos selvagens em Teresina, no Piauí. Escondiam o rosto com capuz e se apresentavam como militantes de um certo “Movimento Anti-Capitalista”. A exemplo do que ocorreu em São Paulo, não surgiram nos primeiros dias das mobilizações, mas naquela etapa em que o movimento já tinha força própria. Já chegaram quebrando bancos e vitrines de loja, incendiando ônibus. “Consegui marcar uma conversa a sós com um deles,” conta o senador Wellington Dias, ex-governador e principal liderança política do Estado “Queria entender o que pretendiam. É outro mundo. Eles eram contra o sistema. Queriam quebrar tudo. São adversários de toda autoridade, desprezam as leis. O simples fato de encontrar-se com um político, como eu, já era perigoso e condenável.”
PORTO ALEGRE
Na capital gaúcha, dezenas de manifestantes se concentraram em frente
do prédio da prefeitura, que tinha a entrada isolada por cordas e vigiada
pela Guarda Municipal, durante reivindicação contra o aumento da tarifa
A brecha que abriu espaço para os protestos contra um aumento de 20 centavos nasceu de uma presunção política – a ideia de que o reajuste poderia ser visto como uma questão administrativa. Fernando Haddad, o prefeito de São Paulo do PT, e Geraldo Alckmin, o governador tucano, pretendiam anunciar o aumento em janeiro, mas, em função de um pedido da presidente Dilma Rousseff, receosa de que a medida pudesse alimentar a inflação, decidiram adiar o reajuste por seis meses. O tempo permitiu uma negociação que parecia favorável a todos. O governo federal desonerou o PIS e o COFINS das empresas de ônibus. Com isso, foi possível elevar a passagem para R$ 3,20 em vez de para R$ 3,40.
Tudo parecia acertado, mas faltou combinar com o principal interessado – o passageiro, que teria de colocar a mão no bolso e entrar com sua cota de sacrifício. Embora o reajuste das passagens seja um pesadelo histórico na rotina dos prefeitos de grandes cidades, que nem sempre enfrentam protestos portentosos, mas nunca são capazes de evitar quedas abruptas em seus índices de aprovação popular depois que o cidadão comum sente o golpe, o reajuste foi encaminhado como se fosse a coisa mais natural do mundo. “Eles esqueceram que por trás de uma decisão técnica sempre há uma questão política,” afirma Lucas Oliveira.
Manifestações chegam a vários pontos do país
e ganham causas diversas, da saúde à educação
No início dos protestos, Geraldo Alckmin e Fernando Haddad se encontravam em viagem em Paris, ao lado do vice-presidente Michel Temer. De lá mesmo informaram que não pretendiam modificar o reajuste. Numa argumentação que repetiu ao voltar ao Brasil, Alckmin explicou que o caixa do governo não tinha recursos para subsidiar o preço baixo. Haddad lembrou que, na campanha eleitoral, assumira o compromisso de fazer reajustes abaixo da inflação – o que fez, efetivamente. Tanto o prefeito como governador tem argumentos. Mas as manifestações expressaram outra realidade, mais exigente e inconformada – e são elas que aguardam respostas. Mas não as que a PM, com força violenta e desproporcional, deu.
Fonte: Isto É